Saltar para o conteúdo Saltar para a navegação principal
Com o apoio
Saiba mais
Gif animado de carregamento de página

Odair Moniz

Como é que o punhal aparece 27 minutos depois do tiro mortal?

Os dois minutos que levaram à morte de Odair Moniz, o punhal que só aparece depois e os testemunhos contraditórios sobre o que aconteceu. O julgamento arranca dia 22 de Outubro, no Tribunal de Sintra, com um polícia no banco dos réus. Faz um ano que Odair Moniz morreu.

Para garantir que todos os vídeos são reproduzidos corretamente, certifique-se de que o modo de poupança de bateria está desactivado.

Na madrugada do dia 21 de Outubro de 2024, o cozinheiro cabo-verdiano Odair Moniz foi morto com dois tiros pelo agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) Bruno Pinto.

O polícia justificou o disparo com o suposto uso de um punhal por Odair Moniz.

Na investigação, a Polícia Judiciária (PJ) concluiu que Odair Moniz não tinha nenhum punhal consigo. Mas foi encontrado um punhal junto ao local. Pertencia a Odair Moniz? Se não, de quem era? Como apareceu? Em que momento? Foi colocado por alguém?

Em vésperas de julgamento, e no dia em que se assinala um ano da morte de Odair Moniz, recriamos, passo a passo, a sequência dos eventos, desde o momento em que se inicia a perseguição, até ao momento depois da recolha de provas.

Toda a informação que aqui reproduzimos é baseada na investigação da PJ, do despacho do Ministério Público (MP), de 29 de Janeiro, que acusa o agente Bruno Pinto de homicídio e de um novo despacho, de 1 de Outubro, que acusa dois agentes de mentirem sobre onde e quando foi encontrada a faca.

Em momentos pontuais, adicionamos notas do PÚBLICO, que consideramos relevantes.

Retrato de Odair Moniz
Odair tinha 43 anos e era natural da Praia, Cabo Verde. Vivia em Portugal desde os 18 anos e tinha três filhos

Para facilitar a compreensão deste trabalho, os nomes dos arguidos e da vítima surgem com cores.

Odair Moniz, cabo-verdiano a viver há 18 anos em Portugal, tinha 43 anos.

Bruno Pinto, que disparou contra Odair, é acusado de homicídio. Tinha na altura 28 anos e é polícia desde Setembro de 2022.

Rui Machado e Daniel Nabais são arguidos noutro processo por falsas declarações sobre o punhal que foi encontrado no local, e usado como justificação para os disparos.

Daniel Nabais, na altura com 33 anos, é agente da PSP desde Outubro de 2022. Rui Machado, 21 anos, é agente desde 2023.

No dia 21 de Outubro de 2024, às

Na madrugada de 21 de Outubro Odair Moniz sai da Rua Principal da Cova da Moura em direcção à Avenida da República.

Encosta-se à esquerda para a Avenida 25 de Abril. Fica frente-a-frente com o carro de patrulha da PSP, onde estão os agentes Bruno Pinto e Rui Machado.

Odair Moniz faz guinar o seu carro para a direita e acelera pela mesma avenida.

Odair Moniz imprime velocidade e entra na Rua 8 de Dezembro (Cova da Moura). É perseguido pelo carro da polícia.

Nota PÚBLICO: A perseguição dentro da Cova da Moura não foi captada pelas câmaras de videovigilância. Mas é possível constatar que durou pouco mais de um minuto, segundo os relógios das câmaras.

A câmara de videovigilância 52, situada num poste da Rua António Aleixo, com vista para a Rua Principal, na Cova da Moura, captou os acontecimentos descritos abaixo.

As horas, minutos e segundos são os registados por essa câmara. Em pano de fundo, está o local do embate dentro da Cova da Moura.

A câmara 52 capta as primeiras imagens da Rua Principal em que se vê o carro de Odair Moniz enfaixado contra um carro estacionado.

Ilustração do carro de Odair Moniz depois do embate, a partir de uma imagem do processo

O arguido Bruno Pinto tenta imobilizar Odair Moniz segurando-lhe no braço direito. Moniz tenta libertar-se sacudindo o seu braço direito.

Nota PÚBLICO: Não é visível qualquer arma na mão de Odair Moniz.

O agente Rui Machado empurra Odair Moniz e tenta imobilizá-lo.

Bruno Pinto tenta imobilizar Odair Moniz com um bastão. Não é possível aferir se Odair Moniz é atingido.

Odair Moniz dá um pontapé nas costas de Bruno Pinto.

Bruno Pinto tira a arma de fogo do coldre e dá um tiro para o ar. De acordo com as imagens disponibilizadas, não é possível ver o segundo tiro de advertência que os agentes dizem que foi disparado.

Odair Moniz evita ser manietado, sobe a rua e os agentes vão atrás dele. A PJ sublinha que não aparenta ter qualquer objecto nas mãos.

Os dois agentes “encurralam” Odair Moniz junto a dois carros.

Bruno Pinto parece tentar manietar Odair Moniz, que volta a oferecer resistência e a seguir avança para o agente, abrindo os braços.

Há um confronto físico entre Bruno Pinto e Odair Moniz.

Rui Machado avança em direcção aos dois e usa o bastão para atingir Odair Moniz.

Odair Moniz, por sua vez, agarra o braço esquerdo de Bruno Pinto. É então que Bruno Pinto dá um passo atrás e aponta a arma a Odair Moniz

Nota PÚBLICO: Os dois tiros contra Odair são disparados neste momento, cerca de dois minutos depois do início da perseguição. A perícia revelou que foram feitos a uma distância entre 20 e 50 centímetros. A câmara de videovigilância não permite uma visualização aproximada à cena.

Ilustração dos cartões de identificação de Odair Moniz, a partir de uma imagem do processo

Odair Moniz cai, tentando amparar a queda com as duas mãos. Rui Machado, dá uma bastonada no corpo de Odair Moniz, já no chão.

No processo, há uma fotografia com cartões de identificação de Odair onde são visíveis perfurações, “ao que tudo indica”, “causadas” pela passagem dos projécteis.

Chega ao local o segundo carro da PSP, cujos ocupantes já tinham sido alertados para uma ocorrência, e estava muito próximo.

Abaixo reproduzimos excertos de vídeos captados por um morador de uma sequência de tempo contínua filmada com interrupções. Estes vídeos, que constam no processo e que circularam nos media e redes sociais a seguir à morte de Odair, contêm uma série de anotações da PJ.

A PJ fez a sobreposição destes vídeos com as imagens de videovigilância, que captam a cena de outro ângulo.

Por vezes, há algum desfasamento temporal mínimo entre os dois, por serem dois aparelhos diferentes a registar as imagens.

As imagens que se seguem podem ferir susceptibilidades.

Bruno Pinto avalia os sinais vitais de Odair Moniz.

É possível constatar que Odair Moniz tem dois objectos à cintura. São as duas bolsas.

Bruno Pinto avalia novamente os sinais vitais de Odair Moniz. À volta estão mais agentes, que chegaram entretanto ao local, pelas 5h33. Um deles é Daniel Nabais, que passa umas luvas ao agente Rui Machado.

O agente Daniel Nabais mexe no corpo de Odair Moniz para avaliar a existência de ferimentos. Diz, em sede de interrogatório, que quando viraram o corpo encontraram a faca. O MP, na nova acusação, diz que isto é falso.

Nota PÚBLICO: Chega o primeiro carro do INEM

Bruno Pinto ajuda a equipa do INEM na reanimação cardiopulmonar de Odair Moniz.

Nota PÚBLICO: É possível ver que Bruno Pinto e Rui Machado têm luvas calçadas.

Médica do INEM entrega a Bruno Pinto o dispositivo do sistema de compressão torácica, que a passa a Rui Machado.

Não existem objectos junto da roda do carro vermelho.

Continuam a não ser vistos objectos junto à roda do carro vermelho.

Nota PÚBLICO: As bolsas de Odair Moniz são colocadas junto ao carro vermelho pelo agente Rui Machado, mas não se vê quem as tirou da cintura de Odair Moniz, nem quando.

À PJ, Rui Machado confirmou ter sido ele a mexer nas bolsas, mas disse não ter encontrado nenhum punhal.

Mais tarde, no novo processo, Rui Machado disse que o viu debaixo do corpo de Odair Moniz.

Nota PÚBLICO: Odair Moniz é colocado em cima da maca do INEM e é possível ver que não existe qualquer objecto debaixo do corpo.

O agente Rui Machado debruça-se e mexe nas bolsas que estão junto ao carro vermelho na presença de um agente à civil — Daniel Nabais — e de um dos técnicos do INEM.

Rui Machado mexe nas bolsas durante, pelo menos, 58 segundos.

Ao longo deste intervalo, os dois agentes Daniel Nabais e Rui Machado conversam e estão sozinhos.

Junto à roda do carro é possível ver um objecto semelhante a um punhal enquanto Rui Machado mexe nas bolsas.

Nota PÚBLICO: Menos de 4 minutos antes, o punhal não estava no local.

A PJ descreveu o punhal: mede 25 cm de comprimento, tem uma lâmina serrilhada de 15 cm com a inscrição da palavra “Macho” e um cabo de plástico preto de 10 cm.

Rui Machado desce a Rua Principal da Cova da Moura com as bolsas de cintura de Odair Moniz na mão.

Segundo a nova acusação do MP, apurou-se que Rui Machado transportou a faca nesta ocasião.

Já não são visíveis quaisquer objectos junto à roda do carro vermelho. A faca já não está naquele local.

O agente Rui Machado, junto ao carro, segura na caixa de primeiros socorros.

No novo despacho, o MP apurou que Rui Machado colocou as bolsas e a faca de novo perto da roda do carro, mas ligeiramente abaixo do sítio inicial.

Nota PÚBLICO: Durante o período em que as bolsas foram manuseadas, o agente Rui Machado tinha as luvas calçadas.

Nota PÚBLICO: A carrinha do INEM abandona o local.

É declarado o óbito de Odair Moniz no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, 49 minutos depois do início da perseguição.

Cronologia depois da morte de Odair Moniz.

Num comunicado enviado à imprensa na manhã de 21 de Outubro, a PSP diz que: “Quando os polícias procediam à abordagem do suspeito [Odair Moniz], o mesmo terá resistido à detenção e tentado agredi-los com recurso a arma branca, tendo um dos polícias, esgotado outros meios e esforços, recorrido à arma de fogo e atingido o suspeito, em circunstâncias a apurar em sede de inquérito criminal e disciplinar.”

No auto de notícia lê-se que o agente Bruno Pinto agiu em legítima defesa por sentir que a sua vida, assim como a do seu colega, estavam em perigo.

Lê-se também que os agentes referiram que Odair Moniz começou por os ameaçar a gritar, chamando também outras pessoas para conseguir fugir, e que uma dezena de jovens desceu a rua na sua direcção.

À hora em que o auto é elaborado — 14h55 — os agentes estavam a ser interrogados pela PJ. A diligência começou às 14h40 e terminou às 18h.

Bruno Pinto disse à PJ que viu, numa bolsa que Odair Moniz usava à cintura, aquilo que lhe pareceu ser a “lâmina de uma arma branca” — e que a terá tentado agarrar.

Já o agente Rui Machado disse ter visto um punhal quando o corpo foi rodeado por elementos do INEM, mas que nunca viu a vítima a empunhar uma arma.

Daniel Nabais disse, em interrogatório do processo no qual foi constituído arguido, que tinha visto a faca debaixo do corpo de Odair Moniz, quando o virou. Rui Machado disse o mesmo neste segundo processo.

29 de Janeiro de 2025

O MP acusa o agente Bruno Pinto “pela prática de um crime de homicídio”.

A investigação concluiu que alguns dos factos descritos no auto de notícia não correspondem ao que, de facto, se passou. Há ainda indícios de que o mesmo não terá sido redigido pelos polícias directamente envolvidos no caso. Foi aberto um novo inquérito, onde se irá investigar um crime de falsificação de documentos.

O punhal

Ilustração do punhal que apareceu junto ao carro vermelho, a partir de uma imagem do processo

5 de Fevereiro de 2025

A PJ, na sua análise laboratorial, não encontrou quaisquer vestígios de ADN ou impressões digitais no punhal.

Admite também que o mesmo pode ter sido manuseado com luvas.

Da consulta do processo resulta claro que um dos polícias que esteve no local logo a seguir aos disparos admitiu que o punhal pode ter sido “colocado por terceiros”.

Quando comunicou a ocorrência ao piquete da PJ, este agente não fez menção a qualquer punhal.

28 de Fevereiro de 2025

Tribunal da Amadora decreta a suspensão de funções de Bruno Pinto.

O agente da PSP que fez os dois disparos contra Odair Moniz queria continuar a exercer funções, mas foi-lhe aplicada a medida de suspensão de funções até final do julgamento.

A juíza considerou que existia “perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas” se se mantivesse em funções: nos dias seguintes à morte de Odair Moniz ocorreram vários tumultos na zona da Grande Lisboa, com um motorista da Carris a ser hospitalizado em estado grave.

1 de Outubro de 2025

O MP emite outro despacho acusando Rui Machado e Daniel Nabais de falsidade de testemunho. Afirma que os dois mentiram sobre terem encontrado o punhal debaixo do corpo de Odair Moniz, algo contradito por testemunhas no local e pelas imagens.

Neste mesmo processo é arquivada a suspeita de falsificação do auto.

O MP arquiva também a suspeita de que o punhal possa ter sido plantado, por falta de indícios. Mas afirma: “Todos os meios de prova apontam para criar a suspeita de que o punhal ‘foi colocado no local (na hipótese de não ser pertença de Odair Moniz) ou colocado à vista (na hipótese de ser sua pertença)’. Mas meras suspeitas não são suficientes para o MP poder, sem indícios, sustentar semelhante tese, razão pela qual a investigação se revelou inconclusiva neste aspecto.”

22 de Outubro de 2025

Está previsto que o arguido Bruno Pinto seja ouvido no Tribunal de Sintra no primeiro dia de julgamento.

Como este é outro processo, Rui Machado e Daniel Nabais serão apenas ouvidos como testemunhas.

O punhal continua a ser um dos elementos-chave deste processo, mesmo que a investigação posterior tenha sido inconclusiva sobre a suspeita de ter sido plantado.

A sequência dos vídeos e a fita do tempo mostram que passaram 27 minutos desde o tiro fatal até à primeira imagem em que aparece o punhal, junto à roda do carro.

O punhal pode ter aparecido ligeiramente antes porque não há filmagem de um intervalo de tempo que vai dos 23 aos 27 minutos; porém, constata-se que 23 minutos depois do tiro fatal não estava nenhuma faca junto à roda. Por isso, com segurança, só podemos afirmar que o punhal estava junto à roda do carro 27 minutos depois do tiro.

Já em relação aos testemunhos, o MP apurou no segundo inquérito que há versões contraditórias: os dois agentes acusados de mentir dizem que viram o punhal quando o INEM chegou, 20 minutos depois do tiro; outros dois dizem que só o viram quando o corpo de Odair Moniz foi retirado. Há três agentes que nem sequer viram o punhal.

Como apareceu? Em que momento? Foi colocado por alguém no local? E, afinal, de quem era o punhal? Estas são algumas das perguntas a que o julgamento poderá ou não dar resposta.

Odair Moniz era cozinheiro num restaurante em Benfica, pai de dois filhos e cuidava de outro menor com a mulher.

Os dois tinham aberto um café no bairro do Zambujal, na Amadora. Na noite trágica, terá saído da Cova da Moura de madrugada, onde estava a conviver com amigos, para ir buscar cachupa a casa.

Mais sobre Odair Moniz